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Santa Maria passou a contar, na última quarta-feira (27), com um Grupo Reflexivo para Homens voltado majoritariamente a réus condenados por violência contra a mulher. A iniciativa é organizada pelo Juizado de Violência Doméstica e Familiar, em parceria com o Ministério Público e a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Os participantes cumprem 13 encontros semanais no prédio do Fórum. Ao final, o comparecimento integral extingue a pena recebida, conforme determinações judiciais para cada caso.
A cidade já registrou uma experiência anterior, conduzida antes da pandemia. Para o retorno, o projeto foi reestruturado e conta com a participação do Observatório de Direitos Humanos (ODH), da Pró-Reitoria de Extensão da UFSM.
O juiz Rafael Pagnon Cunha, titular do Juizado de Violência Doméstica de Santa Maria, explica que a proposta se insere no escopo dos Grupos Reflexivos de Gênero e que, além dos grupos para homens, há também aqueles destinados especificamente às mulheres e também mistos. A iniciativa já funciona no Rio Grande do Sul e em outros Estados. Em Santa Maria, entretanto, há apenas grupos destinados aos homens. O juiz não descarta que, futuramente, possa haver a criação de grupos mistos.
Segundo o magistrado, a seleção dos participantes é direcionada a homens com sentença condenatória transitada em julgado, ou seja, não há mais chance de recurso. São sentenças que variam de um a dois anos, substituídas por medidas socioeducativas. Nesse caso, os condenados devem comparecer, obrigatoriamente, aos encontros.
– Não é algo optativo. Para eles, a opção é: ou atendem o grupo ou vão presos. Faz parte da condenação deles. Temos também dois ou três homens que ainda não têm condenação e que vieram somente para uma audiência de acolhimento ou de custódia, mas estão envolvidos em um contexto de violência contra a mulher, por isso foi oferecido a eles (a participação no grupo). Mas o grupo, em sua maioria, é direcionado a homens já condenados – diz Cunha.

Os encontros devem ocorrer uma vez por semana. Após cumprirem as determinações dos 13 encontros, os homens condenados terão suas penas de prisão extintas.
– As penas foram substituídas por essa participação porque não são muito altas. Os grupos criados serão a única opção para esses homens. É mais uma ferramenta que se agrega à repressão e à educação para a gente fazer essa virada que buscamos tanto – informa Cunha.
O que é abordado nos encontros
A programação aborda fundamentos legais e sociais, medidas protetivas de urgência, responsabilidades e limites. O foco está na compreensão ampliada da violência.
– Muitos chegam aqui imaginando que violência contra a mulher seja somente bater nela, quando a gente sabe que isso se inicia lá atrás, com pequenos gestos de controle e dominação, de ausência de valorização da mulher. Vão conhecer também as consequências jurídicas da condenação que tiveram – afirma o juiz.
O magistrado destaca que, durante os encontros, os homens irão, entre outras coisas, conhecer a legislação, a importância da lei Maria da Penha, o que são medidas protetivas de urgência e por que elas existem.
– Sabemos que nosso mundo é machista, dominado e controlado pelos homens. Isso também precisa ser apresentado a eles para que compreendam o modo que o nosso mundo é, como a nossa sociedade e a nossa cultura se desenvolvem – diz.
Impacto esperado
A iniciativa busca reduzir a reincidência no crime e romper ciclos de agressão, somando educação à repressão penal.
– Vemos os homens trocando de companheiras e voltando para cá como réus em processos de violência doméstica. Assim como também vemos as mulheres trocando de companheiros violentos. O Direito Penal é importante, e precisamos intervir na vida das pessoas, ter medidas protetivas, prender quem tem que ser preso, mas também temos que entrar na cabeça desses homens – avalia Cunha.
O magistrado relaciona o debate público a mudanças de comportamento e a uma maior procura por ajuda. Em agosto, a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) divulgou que houve um aumento de 60% nas prisões por violência doméstica em relação ao mesmo período do ano passado, movimento atribuído também à atuação de órgãos como a Polícia Civil, o Ministério Público e a Brigada Militar.
A visão de quem acompanha a política para mulheres
A professora aposentada Maria Celeste Landerdhal, integrante do Observatório de Direitos Humanos (ODH) e do Fórum de Enfrentamento à Violência contra Mulheres de Santa Maria, contribuiu para o desenvolvimento do projeto. Ela acompanha a agenda de enfrentamento a esse tipo de crime.

Maria Celeste tem uma trajetória marcada pelo feminismo e pela defesa de políticas públicas voltadas às mulheres, atuando há décadas em debates sobre gênero, cidadania e direitos humanos no município e no Estado. Para a professora, os grupos reflexivos compõem uma estratégia eficaz quando articulados a outras políticas.
– Pesquisas indicam que, entre os homens que participam desses grupos, só 5% reincidem no mesmo crime. Por isso, penso que, sim, possam reduzir a violência contra as mulheres e contribuir principalmente para a mudança de cultura, porque a gente quer mudança dessa cultura ancorada no patriarcado, que tem esse poderio hegemônico dos homens sobre as mulheres, que faz com que eles pensem, inclusive, que as mulheres são seres de segunda categoria – afirma.
A docente reforça que o ideal seria que houvesse uma educação de base, nas escolas e em casa. Entretanto, destaca que essa não é uma realidade presente no contexto social brasileiro e que, por isso, "os Grupos Reflexivos para Homens vêm em boa hora".
Ela comenta, ainda, sobre outras iniciativas desenvolvidas no município, como cursos para professoras estaduais e municipais sobre gênero e violência, do Fórum de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres.
– Todos são estratégias que vão se somando e ajudando o município a olhar de uma forma mais cuidadosa para essa temática. Seria importante, também, levar grupos reflexivos a unidades de saúde e também às penitenciárias. Por que não? – questiona.
Política pública e expansão
Maria Celeste avalia que Santa Maria precisa consolidar estrutura institucional para mulheres.
– Duas pautas são fundamentais: uma coordenadoria ou secretaria de políticas para as mulheres e a democratização do Conselho Municipal, para que entidades possam ingressar de forma ampla – afirma.
Além disso, ela defende a criação de mecanismos permanentes de financiamento e apoio a iniciativas de enfrentamento, como casas de acolhimento e serviços especializados, lembrando que muitas ações ainda funcionam de forma fragmentada e dependem de voluntariado. Para Maria Celeste, a institucionalização é condição para garantir continuidade e efetividade das políticas públicas na cidade.